A FAZENDA, O LOBISTA E A LEI: OS BASTIDORES DE UM ESCÂNDALO QUE ATRAVESSA DÉCADAS

Agro

Fazenda Vitória do Araguaia, em Porto Alegre do Norte-MT, é cenário de uma história que se arrasta por quatro décadas. Proprietários perdem a posse em situação que levanta diversas suspeitas

A história parece saída de um roteiro de ficção. Mas é real. Uma propriedade rural em Porto Alegre do Norte, no interior do Mato Grosso, a Fazenda Vitória do Araguaia, é palco de uma novela jurídica e política há mais de quarenta anos. O enredo envolve disputas de posse, crimes ambientais, suspeitas de grilagem e de venda de sentenças judiciais, além da atuação de um lobista com trânsito livre em Brasília. No centro do furacão está Andreson de Oliveira Gonçalves, hoje preso, suspeito de liderar um esquema de corrupção.

Preso desde novembro de 2024, Andreson perdeu cerca de 10 kg na cadeia. Em uma carta encaminhada ao Supremo Tribunal Federal, ele chegou a mencionar ideias suicidas e comparou sua situação à da Operação Lava Jato, denunciando “tortura psicológica” para forçá-lo a fazer delatações.

Mas sua prisão é apenas a ponta do iceberg.

Uma fazenda em disputa e uma história que não acaba

A Fazenda Vitória do Araguaia, localizada em área de grande valor ambiental e econômico, já foi cenário de diversas disputas judiciais. A disputa atual gira em torno de uma ação possessória — e não de propriedade. Segundo a súmula 487 do STF, esse tipo de ação se baseia em fatos e não em documentos. Ainda assim, tentativas de alterar o rumo da perícia técnica e judicial têm se intensificado nos bastidores.

“Se o perito olhar a posse, vai ver que está tudo errado”, comenta uma fonte próxima ao caso. “Mas se ele se concentrar apenas nos documentos, pode-se ganhar tempo e obscurecer o real cenário de ocupação.”

A área, que no passado foi palco de assentamentos informais e parcelamentos à margem do Rio Xavantina, abriga hoje mais de 200 pequenas chácaras, muitas delas inseridas em zona de preservação ambiental. De acordo com relatos locais, as reintegrações de posse foram realizadas durante o parcelamento, criando um ambiente tenso e propício a conflitos.

Uma perícia feita no escuro

A reportagem entrou em contato com o perito responsável pela análise técnica da área.

Fizemos diversas perguntas: como funciona este serviço? Se a propriedade tiver algum litigio, como é relatado pela perícia? Como funciona o trabalho da perícia em uma propriedade com situações irregulares? A perícia consegue indicar se o proprietário invadiu a área de proteção ambiental? E se isso causou algum dano ao meio ambiente?

O profissional limitou-se a dar a seguinte resposta: “Sou o perito e na função estou elaborando laudo pericial, mas esse processo de elaboração corre internamente e em breve deve estar protocolado nos autos, é o que posso lhe adiantar. Estou na reta final desse e outros laudos.”

Não para por aí. Também entramos em contato com o auxiliar técnico por proprietários que perderam a posse, que deveria ter acompanhado as diligências. Deveria. Mas não acompanhou todas, uma vez que, pelo que foi constatado, o perito responsável só o comunicou sobre a realização de um dos procedimentos.

Isso coloca em xeque todo o processo. Pois era dever do responsável, como forma de dar transparência à perícia, ter convocado o auxiliar representante dos proprietários. “Assim, não temos como confrontar as informações, ficamos no escuro frente à situação”, disse o auxiliar.

Outras perguntas serão feitas ao perito responsável, e as respostas serão decisivas para o andamento do caso, que já está sendo monitorado por procuradores que defendem a federalização do processo, em razão da existência de condutas que põem em risco a segurança jurídica junto ao Incra, a Funai e a própria União.

Venda de decisões e o peso das operações

O nome de Andreson Gonçalves surge ligado a operações de bastidores envolvendo sentenças no STJ. Segundo uma investigação publicada pelo site da revista Veja, há indícios de que o lobista atuava diretamente na materialização de decisões favoráveis aos seus clientes. Uma das propriedades envolvidas é justamente a Fazenda Vitória.

De acordo com a publicação, o lobista mantinha interlocução frequente com figuras do meio jurídico e político. “Ele conseguia decisões antes mesmo que elas fossem publicadas oficialmente”, relatou à reportagem da Veja um servidor em off. Uma ata notarial obtida pela reportagem comprova que sentenças já circulavam informalmente entre advogados antes de serem publicadas.

Em Brasília, circulam rumores de que juízes e desembargadores envolvidos no caso possam ter tido seus nomes  citados em representações formais, algumas das quais ainda estão em sigilo. Durante uma reintegração de posse recente, um policial confidenciou que “tudo seria resolvido em 30 dias” — como se decisões judiciais já estivessem garantidas por fora dos autos.

O elo com a criminalidade

Outro ponto de tensão é o surgimento de nomes ligados a grupos criminosos de invasão de terra nas investigações. A Polícia Federal, em operação realizada em outros momentos, identificou movimentações financeiras atípicas. Há também suspeitas de que valores pagos por perícias e laudos possam ter ultrapassado R$ 1,5 milhão.

Segundo fontes com acesso aos autos, um oficial de justiça teria participado de negociações que deveriam ser exclusivamente técnicas, o que levanta mais dúvidas sobre a integridade do processo.

Os personagens e a trama paralela

Entre os nomes citados, está o de Adenilson da Silva Melo, apontado como figura-chave nos fatos ocorridos na Fazenda Vitória do Araguaia. Em conversas obtidas pela reportagem, há menção direta a um acordo com uma pessoa interessada em consolidar a titularidade da área. Haveria também a participação de um capataz, homem que nasceu dentro da fazenda e hoje representa os interesses da empresa nas diligências.

As evidências apontam para uma tentativa orquestrada de manipular a narrativa jurídica e administrativa do caso. Representações foram protocoladas contra decisões liminares sem qualquer decisão de mérito da causa e mandados de segurança já foram julgados.

A corda que está esticando

Um subprocurador da República, em uma sessão de julgamento, advertiu a necessidade de federalização do processo. Ele alegou risco à segurança jurídica, e agora culminado com indícios de corrupção e a possibilidade de conivência de autoridades, que não representam suas instituições em suas atitudes.

Há inclusive indícios de que decisões tomadas por tribunais estaduais tenham desrespeitado os direitos essenciais de propriedade, o que é um dever do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Este na correição de condutas individuais.

Enquanto isso, o prazo para entrega da perícia técnica se aproxima, com o risco de que o perito, sob intensa pressão, seja responsabilizado por omissões ou omissões parciais.

O que está em jogo

Muito mais do que um litígio agrário, o caso da Fazenda Vitória do Araguaia revela uma teia de relações espúrias entre empresários, agentes públicos, operadores do Direito e talvez até membros do sistema de segurança. Uma teia que, ao se desfazer, pode expor não apenas irregularidades pontuais, mas um sistema estruturado de corrupção.

O primeiro capítulo dessa história está sendo contado agora. A reportagem aguarda posicionamento formal das partes envolvidas.

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